Os sobreviventes
Marité e Tximagu Ikpeng tiveram de abandonar a aldeia, no Xingu, para salvar os trigêmeos. No documentário Quebrando o silêncio, Marité relata como é o infanticídio entre seu povo.
Documentário criou polêmica internacional
Há um ano e meio uma ONG brasileira e uma organização evangélica norte-americana causaram uma discussão internacional ao produzir um misto de documentário e drama para uma campanha contra o infanticídio nas tribos da Amazônia. O vídeo enfureceu a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) ao retratar a história de Hakani, menina da etnia Suruwaha, uma das tribos às margens do Rio Purus que ainda praticam o ritual.
Lideranças indígenas pedem ajuda
Várias lideranças indígenas fazem ecoar pedidos de socorro ao longo de Quebrando o silêncio. "A criança é o futuro dos indígenas. Devemos investir na vida deles. Devemos dar o direito à vida. Que ela viva, cresça e se torne um indígena que ame sua cultura e que saiba como trabalhar dentro da sua cultura e dentro do Brasil", diz Eli Ticuna, vice-presidente do Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos.
Indígena por parte de pai, Sandra Terena ouvia-o desde pequena falar sobre a prática do infanticídio em diferentes aldeias do país, mas só se deu conta da gravidade do assunto já adulta. Quando há quase dois anos uma ONG brasileira e uma entidade evangélica dos Estados Unidos causaram furor internacional com um docudrama sobre a morte de crianças nas tribos amazônicas, Sandra já produzia seu próprio filme. Por fim, Quebrando o silêncio, documentário de 30 minutos, resultou do trabalho voluntário de cinco pessoas e de 80 horas de gravações ao longo de três anos em sete aldeias do país.
"Eu pensava que matar crianças era uma prática do passado, mas descobri que meus parentes, em algumas aldeias, ainda fazem isso", lamenta Sandra, que na língua de sua tribo se chama Alieté. "Inocentes que não têm chance de escolher viver são sacrificados. Todo mundo sofre: sofre o pai, sofre a mãe, a criança e quem luta para que a criança não morra", diz. Mas há um movimento contrário aos costumes: "hoje tem parentes que estão escolhendo vida para as nossas crianças." A partir dessa constatação, Sandra apresentou o projeto ao casal de cinegrafistas André e Cristina Barbosa, que coletou depoimentos de indígenas no curso de quase três anos.
O documentário traz declarações de representantes de 12 etnias contrárias à prática do infanticídio, além do relato de sobreviventes e de pais que fugiram da aldeia para salvar os filhos. Crianças indesejadas são condenadas à morte por nascerem com deficiência física ou mental, serem gêmeas, filhas de mãe solteira ou tidas como portadoras de azar para a comunidade. São enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta. A Atini voz pela vida, organização sem fins lucrativos sediada em Brasília que atua na defesa do direito das crianças indígenas, identificou 18 etnias no país onde há essa prática.
Não há dados confiáveis sobre infanticídio, e a Fundação Nacional do Índio (Funai) diz se tratar de casos isolados, inexpressivos para justificar uma política de Estado. As 18 entidades que subscrevem o site www.hakani.org endossam dados que demonstram ser essa uma prática mais comum do que a Funai admite. "Muitas das mortes por infanticídio vêm mascaradas nos dados oficiais como morte por desnutrição ou por outras causas misteriosas".
De acordo com essas entidades, encabeçadas pela Atini, pesquisa realizada por Rachel Alcântara, da Universidade de Brasília, mostra que só no Parque Xingu são assassinadas cerca de 30 crianças todos os anos. E de acordo com o levantamento feito pelo médico sanitarista Marcos Pellegrini, que até 2006 coordenava as ações do Distrito Sanitário Ianomâmi, em Roraima, 98 crianças indígenas foram assassinadas pelas mães ou por alguém da tribo em 2004. "Em 2003 foram 68, fazendo dessa prática cultural a principal causa de mortalidade entre os ianomâmi", destaca o site.
"Tenho acompanhado essa situação do infanticídio. Isso não é de hoje que ouço falar. Vejo em várias comunidades. Alguns rituais são diferentes, em cada povo, mas na verdade tudo acaba na morte de uma criança", diz Carlos Terena, organizador dos Jogos Indígenas. "Nosso povo jaminawa matava, e às vezes enterrava, assim, vivo mesmo. Às vezes pegava no nariz deles... matava", conta uma índia dessa etnia. "Coisa triste mesmo. Que foi enterrado pequeno, rapazinho já. Não era mais criança, não. Eu mesmo vi isso", relata no documentário o cacique Aritana Yawalapiti.
"Se criança nasce aqui dentro da comunidade, eles enterram", diz Paltu Kamayurá, que teve um dos filhos gêmeos sepultado vivo. "Até hoje não esqueço, porque estou vendo o menino, o crescimento dele, aí eu penso no outro também. Agora meu pensamento não é mais como o deles, não é mais pensamento de antropólogo. Eles falam: Deixa esses índios viverem assim. Essa é a cultura deles. Não é. Porque a cultura não para. Ela anda. O pensamento também anda, igual à cultura", observa.
"Há quem diga que essa prática faça parte da nossa cultura, e que por isso deve ser mantida. Mas desde quando uma cultura para no tempo? Por que a gente tem de continuar com uma prática que nos faz sofrer, que nos faz mal, que nos causa remorso? Vida não combina com morte. Será que para manter nossa cultura viva precisamos matar nossas crianças?", questiona Sandra no documentário. "Mas lideranças indígenas têm levantado a voz contra a prática do infanticídio", continua. Foi por essa razão que ela decidiu usar a formação em Jornalismo em favor dos povos indígenas.
Sandra agora busca apoio financeiro e logístico para exibir o documentário nas aldeias do país. Ele já foi exibido em setembro no Xingu, durante evento de mulheres indígenas. Quebrando o silêncio é um dos três finalistas na categoria "Reduzir a mortalidade infantil" do prêmio Voluntariado Transformador, promovido pelo Centro de Ação Voluntária de Curitiba. A cerimônia de premiação será amanhã, no Teatro Positivo.
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