Se você trabalha com carteira assinada, deve um agradecimento ao repórter Alexandre Nascimento, desta Gazeta do Povo. Com duas tabelas na mão, Alexandre desmontou uma farsa espalhada pela Confederação Nacional da Indústria para todo o país. Trata-se de uma cartilha destinada a defender os patrões contra uma possível redução de jornada no país.
O documento, que está disponível na internet, chama-se, ironicamente, "Redução da Jornada de Trabalho: Mitos e Verdades". Uma das "verdades" exibidas na cartilha diz respeito à situação trabalhista em outras nações, especialmente nas mais ricas. "Países mais avançados têm jornadas legais longas", diz o texto. Aqui, sim, estamos diante de um mito. Ou, mais propriamente, de uma farsa.
A tabela mostra países como Alemanha, Holanda e Dinamarca com cargas máximas de 48 horas (acima da brasileira, portanto). E outros países, como Canadá, China e Coreia do Sul com 44 horas. As informações, segundo a tabelinha, seriam da Organização Internacional do Trabalho, instituição séria, ligada à ONU. E a conclusão é uma só: se o brasileiro quiser se desenvolver, trate de aceitar uma carga horária igual ou maior à atual.
Alexandre, porém, fez seu papel de repórter. Descobriu a verdadeira tabela da OIT e comparou as duas. Nenhuma relação entre a informação correta e a panfletagem feita pelos senhores da indústria. A lista da OIT de países que têm carga horária de 48 horas é ligeiramente diferente: inclui Moçambique, Tunísia, Camboja, Haiti, Guatemala e Paraguai.
Canadá, China, Coreia do Sul e Holanda aparecem com 40 horas (assim como os Estados Unidos, omitidos na cartilha da CNI). Exatamente como reivindicam os representantes dos brasileiros. E países como Dinamarca e Alemanha aparecem na lista dos que não têm carga máxima regulamentada. Isso quer dizer que poderiam chegar a 48 horas. Mas quando se pega a carga real desses países, como mostra um estudo publicado na revista britânica The Economist, vê-se que eles ficam bem, bem longe da carga brasileira.
A CNI é contra a redução da jornada. Tem todo o direito de ser contra e de defender seu ponto de vista. O que não vale é atribuir à OIT dados que saíram da cabeça de alguém, digamos, bastante criativo. Ainda mais quando se sabe que a OIT é francamente favorável à redução da jornada. "As jornadas de menor duração têm efeitos positivos, incluindo benefícios para a saúde e a vida familiar, a redução de acidentes no local de trabalho, assim como maior produtividade e igualdade entre os sexos", cita Alexandre em seu texto.
Ouvida, a confederação disse que não havia percebido o erro. E que iria ver o que tinha acontecido. Num primeiro momento, a confederação pôs a culpa em terceiros, dizendo que o levantamento era alheio. Um erro sem querer, portanto. Mas, convenhamos, no mínimo, no mínimo, houve má vontade, senão má-fé. Afinal, o erro passou por ser a favor do que a CNI pensa. Se fosse um levantamento falando mal da indústria nacional, seria publicado sem uma checagem prévia? Difícil de acreditar.
Espera-se que a cartilha seja corrigida logo. Até o fechamento desta edição, porém, o texto estava lá: com a farsa exposta a todos os que visitassem a página da CNI.
Bolsa IPI
Nossos industriais andam mesmo distraídos. E não é de hoje. É o que mostra o caso do crédito-prêmio concedido a exportadores do país. A Constituição de 1988, em seus atos transitórios, diz claramente no artigo 41 que incentivos fiscais como esse estariam extintos em dois anos. Portanto, cessariam em 1990. Alguns industriais, distraídos como no caso da tabela da OIT, acharam que o prêmio ainda estava valendo. E continuaram sem pagar o IPI.
O caso trouxe um furo bilionário para as contas do Brasil estimado em, no mínimo, R$ 62 bilhões. Pode chegar a, ou passar de, R$ 200 bilhões.
Para tentar reaver o direito que não tinham (o que não impediu que continuassem usufruindo dele) os exportadores, na expressão de Elio Gaspari, "contrabandearam" dentro de uma medida provisória a criação do que o colunista chama de Bolsa IPI. No Legislativo, como sempre, o interesse dos distraídos industriais foi prontamente ouvido. No Judiciário, não. Nessa semana, o STF decretou que não há erro: o prêmio cessou em 1990 e ponto.
Assim como no caso da cartilha, a nossa elite industrial viu a parte da história que lhe interessava: num caso, viu países ricos com jornadas que não existiam; no outro, viu-se no direito de ficar com um dinheiro que deveria dar ao Estado.
Em outros países, a cobertura dos jornais centra fogo mais nas empresas do que no poder público (isso não é mito, é verdade). Talvez devêssemos fazer o mesmo. Nossa elite econômica, muitas vezes, se comporta exatamente como nossa elite política. E tem até mais poder nas mãos do que ela. Fica a lição.