Finalizando a série de quatro artigos discutindo a tese que visa proibir o Ministério Público de interpor recursos de decisões absolutórias de primeiro grau em processos criminais (vide os três primeiros aqui, aqui e aqui), resta agora enfrentar duas particularidades dessa discussão toda que culmina na necessidade de se reformar a legislação recursal no processo penal brasileiro.

CARREGANDO :)

Num primeiro ponto, os defensores do que venho denominando de “tese proibicionista” trazem novo argumento para impedir o Ministério Público de recorrer de decisões de absolvição em primeiro grau. Sustentam que quando o réu é condenado apenas em grau de Apelação, ele não poderia discutir a matéria de fundo (fato e prova) pelas vias recursais – especial e extraordinária – junto aos Tribunais Superiores, e, por conta disso, teria prejudicada sua garantia ao duplo grau de jurisdição.

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À primeira vista, ainda que se saiba que os Recursos Especial e Extraordinário não comportam reexame de prova e do fato (súmula 279, do S.T.F. e súmula 07 do S.T.J.), isso não significa dizer que por ocasião do julgamento do recurso ordinário de Apelação no Tribunal estadual ocorra cerceamento de defesa em relação à matéria de fundo. Com efeito, ao contra-arrazoar o recurso de Apelação interposto pelo Ministério Público, a defesa ingressa na análise do mérito da causa e discute a tese da acusação em segundo grau com base nas provas existentes nos autos. Nessa discussão, o defensor também pode apresentar memoriais aos Desembargadores, destacando mais uma vez seus argumentos e, ainda, pode fazer sustentação oral no Tribunal por ocasião do julgamento. Tanto é verdade que o Tribunal deverá enfrentar os argumentos relacionados à matéria de fato e prova constantes nas contrarrazões defensivas, permitindo, inclusive, a oposição de Embargos de Declaração pela defesa em caso de omissão e, se estes não forem acolhidos e sanadas as omissões, poderá ensejar, agora sim, a discussão de nulidade do julgado por cerceamento da defesa. Por ocasião do julgamento, ainda pode ocorrer do Tribunal, levando em conta o teor das alegações da defesa, negar provimento ao recurso do Ministério Público.

Não bastasse, a legislação vigente ainda admite que a defesa possa interpor recurso de Embargos Infringentes quando a decisão do Tribunal estadual possa lhe prejudicar e não tenha sido unânime e, neste caso, igualmente rediscutir o fato e a prova em colegiado mais amplo no próprio Tribunal de segundo grau. Enfim, o acusado tem ampla possibilidade de argumentação e interferência na construção do entendimento da matéria submetida a recurso perante o Tribunal de Justiça (Justiça estadual) ou Tribunal Regional Federal (Justiça federal).

Veja-se, portanto, que a interposição de recurso de Apelação pelo órgão ministerial não impede que a defesa se manifeste sobre o mérito da causa na instância recursal. Tal manifestação, como dito, se dá na peça de contrarrazões e nos sucedâneos de intervenção já referidos.

No entanto, uma vez revertida a decisão de absolvição de primeiro grau e, assim, prolatada a decisão condenatória apenas em sede de Apelação do Ministério Público, e sendo o julgamento à unanimidade, há que se levar em conta outro aspecto. Com efeito, não há, hoje, formal possibilidade recursal de Embargos Infringentes que permitiria nova discussão da matéria probatória e fática a partir de uma inédita decisão condenatória unânime em segundo grau, e aí me parece seja importante rever a sistemática recursal brasileira para ampliar a garantia ao duplo grau nos termos do quanto consta no Pacto de San José da Costa Rica e do quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu nesse ponto, como se passará a expor.

Mas antes é importante deixar anotada uma premissa encampada pela própria Corte Interamericana: o problema não se resolve limitando a possibilidade de recurso do Ministério Público, como já destacado e, sim, ampliando a possibilidade recursal da defesa para permitir que, ou o recurso de Embargos Infringentes passe a ser cabível também nesta hipótese, ou o Recurso Especial direcionado ao STJ também permita, nesses casos, o enfrentamento da matéria fática e probatória.

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Assim, toda vez que a condenação do acusado acontecer, de forma primitiva, no julgamento de um recurso do Ministério Público, a decisão deverá admitir recurso pleno para órgão revisional jurisdicional.

Como destacado, sobre este ponto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou no Caso Mohamed vs. Argentina (Sentença de 23 de novembro de 2012), analisando justamente um processo no qual o acusado foi absolvido em primeiro grau, houve recurso do Ministério Público argentino e a condenação sobreveio no Tribunal Superior de Justicia de la Ciudad Autonóma de Buenos Aires. Desta decisão cabia apenas recurso extraordinário para a Corte Suprema de Justicia de la Nación, com matéria restrita e ausente a possibilidade de revaloração fática e probatória – similar ao que ocorre na legislação brasileira. A Corte Interamericana de Direitos Humanos criticou essa limitação recursal:

A Corte faz notar que este caso apresenta a particularidade de que o imputado foi submetido a um processo penal de duas instâncias, e foi condenado em segunda instância por um tribunal que revogou a decisão absolutória do julgado de primeira instância. Para determinar se o senhor Mohamed teria o direito de recorrer da condenação perante o juiz ou tribunal superior, corresponde determinar se a proteção consagrada no artigo 8.2.h da Convenção Americana permite uma exceção, tal como alega Argentina, quando o imputado tenha sido declarado condenado por um tribunal que julgue um recurso contra sua absolvição [1].

(...)

Tendo em conta que as garantias judiciais buscam que aquele que esteja incurso num processo não seja submetido a decisões arbitrárias, a Corte interpreta que o direito de recorrer da condenação não poderia ser efetivo se não fosse garantido a todo aquele que é condenado, já que a condenação é a manifestação do exercício do poder punitivo do Estado. Resulta contrário ao propósito desse direito específico que não seja garantido frente a quem é condenado mediante uma sentença que revoga uma decisão absolutória. Interpretar o contrário implicaria em deixar o condenado desprovido de um recurso contra a condenação. Trata-se de uma garantia do indivíduo frente ao Estado e não somente um guia que orienta o desenho dos sistemas de impugnação nos ordenamentos jurídicos dos Estados Partes da Convenção [2].

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(...)

Pelas razões expostas, a Corte conclui que o sistema processual penal argentino que foi aplicado ao senhor Mohamed não garantiu normativamente um recurso ordinário acessível e eficaz que permitiria um exame da sentença condenatória contra o senhor Mohamed, nos termos do artigo 8.2.h da Convenção Americana, e também constatou que o recurso extraordinário federal e o recurso de queixa [3], ainda que tenha sido salvaguardado o acesso ao primeiro, não constituíram no caso concreto recursos eficazes para garantir dito direito [4].

Frise-se: como se vê do julgado acima referido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não considerou errado o recurso do Ministério Público contra a sentença de absolvição, criticando apenas a sistemática recursal extraordinária limitada na Argentina. O problema, então, como destacado, é de ampliação da possibilidade de recurso da defesa, mas não de cerceamento da possibilidade recursal do Ministério Público. No Caso Mohamed vs. Argentina, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Argentina a “adotar as medidas necessárias para garantir ao senhor Oscar Alberto Mohamed o direito de recorrer da condenação emitida pela Sala Primera de la Cámara Nacional de Apelaciones” [5].

Deve-se, então, reformular a legislação brasileira para adaptá-la ao quanto já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos no referido Caso Mohamed vs. Argentina, considerando que a situação recursal brasileira é praticamente idêntica àquela da Argentina. Portanto, em caso de condenações operadas apenas em grau de Apelação junto ao Tribunal estadual (ou Regional Federal), é preciso prever sistemática revisional do julgado que permita à defesa atacar também a matéria fática e probatória. O mesmo deve ocorrer em qualquer outro recurso ou tribunal que resulte, pela primeira vez, na condenação do acusado em processo criminal.

Ocorre que, com isso, teremos mais uma possibilidade de recurso na já caótica sistemática recursal brasileira. E, nessa medida, é preciso aproveitar a discussão para também repensar o todo do modelo recursal brasileiro, somado à mecânica prescricional e à estrutura das instâncias formais de controle da criminalidade (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário). E este é o segundo ponto que gostaria de destacar para ser pensado na reforma do novo Código de Processo Penal brasileiro que agora foi retomada na Câmara dos Deputados.

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Com efeito, se há necessidade de se criar um novo recurso para garantir o duplo grau de jurisdição a partir de uma decisão condenatória inédita em grau de recurso, nos termos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e do quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu em situação similar para a Argentina, por outro lado, é preciso racionalizar tanto a sistemática recursal brasileira, quanto outros aspectos correlatos, sob pena de, notadamente nos chamados “crimes do colarinho branco”, para emprestar a consagrada expressão de Edwin H. Sutherland [6], a prestação jurisdicional penal continuar a ser próxima da absoluta não efetividade.

Para ilustrar o problema que hoje se evidencia vale ilustrar como ocorre a tramitação da persecução criminal de um caso hipotético envolvendo crime contra o erário. Imagine-se um caso que possa ser considerado “simples”, isto é, que se resuma num único delito de peculato-desvio isolado, de autoria identificada no funcionário público responsável pelo controle do órgão público lesado, com testemunhas fáceis de identificar, com a necessidade de se colher documentos pertinentes à função pública do suspeito e às movimentações bancárias do órgão público-vítima e do suspeito. O caso, portanto, nem exigiria muito aprofundamento de diligências, dispensando meios probatórios mais invasivos, a exemplo da interceptação de comunicações telefônicas ou mesmo de expedição de cartas precatórias para ouvida de pessoas que residem noutras Comarcas. Imagine-se que esse caso, no entanto, não teve início com prisão em flagrante do autor do crime e nem tampouco se entendeu necessário decretar sua prisão preventiva. O investigado, portanto, está solto.

Esse delito, então, é noticiado ao Estado e com isso se deve iniciar a investigação. Como regra geral, o artigo 10 do Código de Processo Penal determina que a investigação esteja encerrada em dez dias, se o indiciado estiver preso, ou em trinta dias em caso de indiciado solto. Vale anotar que, em se tratando de caso com indiciado preso, se a polícia ultrapassar os dez dias de prazo, o investigado deverá ser colocado em liberdade por excesso de prazo e a investigação prossegue com ele em liberdade, valendo agora o prazo normal de trinta dias. Porém, já levando em conta a crônica e dramática carência estrutural das polícias no Brasil, o mesmo artigo 10 do Código de Processo Penal já previu que esse prazo possa ser renovado para continuidade das investigações.

E aqui começa o drama da persecução penal brasileira: como esse caso hipotético que referimos não é o único a ser investigado pela polícia, e como nele “não há urgência”, pois não se trata de indiciado preso em flagrante ou preso preventivamente, levando em conta que a polícia não consegue dar conta de tudo que lhe é noticiado, pois, como dito, não possui estrutura para tanto, ele é reservado a uma espécie de segunda categoria de casos: daqueles não urgentes. Com isso há uma enorme probabilidade de não ser feita qualquer diligência de investigação nesse caso nos trinta dias de prazo que a lei determina. Assim, se renova o prazo por mais trinta dias; e depois por mais trinta, e por mais trinta, e por mais trinta, enfim, por tantas e quantas vezes seja necessário até que a investigação esteja completa, ou não se tenha mais o que fazer porque não se conseguiu produzir provas pelo decurso de tempo ou por outro fator de dificuldade, ou até que ocorra a prescrição da pretensão punitiva do Estado.

E chegamos noutro ponto problemático da Justiça criminal no Brasil: a investigação criminal é extremamente burocrática, cartorializada, com exigência de redução a termo de todos os atos, muito similar ao que se fazia na Idade Média. Para ilustrar, basta verificar que a ouvida de uma testemunha no inquérito policial costuma ocorrer mais ou menos assim: o Delegado elabora um despacho determinando a ouvida da testemunha, designando uma data e horário para tanto. Os autos de inquérito, com esse despacho, são enviados ao Escrivão de Polícia que emite uma notificação entregando-a em mãos do Investigador, o qual, por sua vez, vai à casa da pessoa a ser ouvida e lhe informa do ato. Se a testemunha não puder comparecer no dia e horário aprazado pelo Delegado, ela justifica e a burocracia é toda documentada, com a necessidade de nova vista dos autos ao Delegado para que ele, então, veja nova data e comece tudo de novo. Detalhe: a palavra da testemunha nessa fase sequer é considerada prova capaz de servir à condenação de alguém. Serve apenas como informação ao Promotor para que ele avalie o que fará com o inquérito policial. Poderia, portanto, facilmente ser colhida com uma filmadora, na própria residência da testemunha, em meia hora... mas isso é tema para outro artigo.

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Retomando o caminho burocrático da tratativa de renovação do prazo da investigação e levando em conta esse modelo de tudo ser reduzido a termo e documentado, nem é preciso dizer quão morosa é essa decisão pela renovação do prazo por mais trinta dias. Por vezes, a burocracia de enviar os autos de inquérito policial da delegacia de polícia ao Juiz, que o repassa ao Promotor, que o devolve ao Juiz, que o remete novamente ao Delegado, demora mais de trinta dias. Repita-se aqui o óbvio: não existe só essa única investigação em curso. Normalmente, passados trinta dias, o Delegado de Polícia envia uma pilha enorme de inquéritos policiais que tiveram seus prazos simultaneamente expirados para avaliação da renovação. Nas mesas do Juiz e do Promotor chegam praticamente todos os dias dezenas, ou mesmo centenas de autos de inquéritos policiais com os mesmos pedidos de renovação de prazo. Considerando que também há carência estrutural no Ministério Público e no Judiciário, e como essa não é a única atividade desses órgãos (pois eles, ao mesmo tempo em que analisam autos de investigação, devem também atuar nas centenas de processos já instaurados, realizar e participar de audiências diárias para inquirição de testemunhas e interrogatórios, elaborar peças processuais e interpor ou analisar admissibilidade de recursos), a apreciação da autorização para renovação dos prazos dos inquéritos policiais por vezes é mais morosa que o tempo de autorização concedido para prosseguir....

Com isso tudo, na prática, o prazo máximo da investigação acaba sendo aquele previsto para a prescrição do exercício do poder punitivo e, como se sabe, há uma tabela de prazos no art. 109, do Código Penal, que leva em conta o máximo da pena previsto em abstrato na lei para cada crime. Assim, dependendo da pena máxima prevista na lei, os delitos prescrevem em três, quatro, oito, doze, dezesseis ou vinte anos.

Como no nosso exemplo, o caso não se trata de uma situação de flagrante delito, e nele não há necessidade excepcional de decretação de prisão preventiva, ou seja, o investigado está respondendo em liberdade, com sorte teremos a investigação se “arrastando” e sendo encerrada, em média, algo em torno de quatro anos depois de seu início.

Uma vez encerrada a investigação, e desde que estejam preenchidas as condições da ação, o Ministério Público toma a decisão de oferecer a ação penal respectiva, que é recebida pelo Juiz. O processo, então, tem início e poderá, sem dificuldades levar algo como outros três a quatro anos, em média, de tramitação em primeiro grau até a sentença dada pelo Juiz. Até aí, tudo “normal” para os padrões brasileiros de “celeridade processual”.

Tendo havido condenação em primeiro grau se iniciam os recursos (importantes, diga-se; fundamentais, como garantia, frise-se; mas exagerados e praticamente infindáveis para quem tem recursos econômicos capazes de bancar os custos dos honorários advocatícios ao longo de toda a jornada recursal). Vale aqui um registro importante: os advogados não possuem culpa alguma na morosidade do processo penal brasileiro quando estão utilizando os recursos previstos na legislação. Na verdade, eles estão apenas atuando conforme determina seu mister no patrocínio dos interesses de seu cliente: se a legislação permite que sejam interpostos recursos, bons advogados farão uso deles; de todos eles. Portanto, não se está aqui a criticar a advocacia. Ao contrário. Mas não há como se ignorar o problema decorrente do quanto a legislação processual penal permite. Não há como achar normal o tempo que tramitam os processos penais no Brasil. E um dos fatores para tanto, sem dúvida, é o exagerado número de recursos que são passíveis de serem interpostos.

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Vejamos, então, o quadro recursal admitido pela legislação brasileira e que, ao menos em tese, pode ocorrer a partir da sentença condenatória de primeiro grau. Num primeiro momento, desta decisão cabem os chamados Embargos de Declaração: recurso destinado a esclarecer algum ponto obscuro, contraditório ou ambíguo ou, ainda, destinado a integrar o julgado que pecou por omissão em algum aspecto. Aliás, de toda e qualquer decisão cabem estes recursos. Assim, vou poupar o leitor da repetição: basta imaginar, de cada nova decisão, novos Embargos de Declaração. E vale destacar que da decisão que julga os Embargos de Declaração cabem novos Embargos de Declaração. Sim, basta sustentar que não se entendeu a decisão que julgou os primeiros Embargos. E da decisão que julgar estes novos Embargos, cabem outros novos Embargos. E assim, sucessivamente. São Embargos dos Embargos dos Embargos, diante de nova omissão ou dúvida. Sim, são admissíveis. E, diversamente do que ocorre no processo civil, onde o Juiz poderia dizer que a parte age de má-fé, atentando contra a dignidade da Justiça, pois os recursos poderiam ser meramente protelatórios, rejeitando-os liminarmente e impondo multa ao recorrente (artigos 918 e 1026 do novo Código de Processo Civil), no processo penal esse argumento é bastante reduzido e mesmo por vezes descabido, considerando o princípio da ampla defesa que o orienta.

Julgados os Embargos de Declaração – e também os Embargos dos Embargos dos Embargos – cabe Apelação que visa promover a revisão integral da decisão pelo Tribunal de Justiça. Este recurso, no entanto, não é apresentado diretamente no Tribunal, mas sim perante o juiz de primeiro grau, que pode lhe negar seguimento. Desta decisão cabe outro recurso, chamado Recurso em Sentido Estrito, apresentado ainda e novamente no juízo de primeiro grau. Adivinhe? O Juiz também pode negar seguimento a este recurso. Fim da história? Nem pensar! Se o Juiz de primeiro grau está sendo intransigente na aceitação dos recursos, cabe um recurso para o Escrivão da Vara... Sim, caro leitor! Você não leu errado. Agora é o Escrivão que faz o recurso subir, já que com o Juiz não teve acolhida. Chama-se: Carta Testemunhável (o recurso tem esse nome “esquisito” por conta de ter sido criado na época do Brasil-colônia, quando se enviavam cartas ao presidente do Tribunal da Relação, cujo conteúdo era passível de ser testemunhado, reclamando do abuso dos Juízes de primeiro grau que não permitiam que o Escrivão recebesse o recurso). Ainda está vigente.

Este recurso faz o caso finalmente subir fisicamente ao Tribunal de Justiça estadual. Lá é distribuído a um Desembargador Relator, que pode, sozinho, negar seguimento ao recurso de Carta Testemunhável. Se isso ocorrer, cabe outro recurso, chamado de Agravo Regimental, previsto no Regimento Interno dos Tribunais. A decisão isolada do Desembargador Relator vai, então, ser reapreciada pela Câmara, colegiada. Imagine que a Câmara diga: tem razão o Relator, confirmamos sua decisão de não conhecer do recurso de Carta Testemunhável. Desta decisão, por, em tese, negar vigência à lei federal, e por ferir a ampla defesa, cabem dois recursos ao mesmo tempo: Recurso Especial para o STJ e Recurso Extraordinário para o STF. Ambos são interpostos no Tribunal estadual e são apreciados pelo seu Presidente que, tradicionalmente, nega seguimento na maioria esmagadora dos casos.

Acabou então, pensará o leitor (se é que conseguiu chegar até aqui...). Não, ainda não... Da decisão monocrática do Presidente do Tribunal estadual cabe recurso de Agravo para forçar a subida dos respectivos recursos ao STJ e ao STF. Segue primeiro o Recurso Especial ao STJ. O outro aguarda o resultado do primeiro. No STJ o Recurso Especial é distribuído a um Ministro Relator que pode, sozinho, negar-lhe seguimento. Adivinhe mais uma vez? Cabe recurso de Agravo Regimental desta decisão, forçando nova apreciação pela Turma. Se a Turma negar seguimento ao recurso, confirmando a decisão monocrática, encerra a pendenga no STJ e inicia no STF.

O Recurso Extraordinário que estava sobrestado segue, então, ao STF. Nova possibilidade de um Ministro Relator, sozinho, negar seguimento. Desta decisão, novo recurso de Agravo Regimental para a Turma. Da decisão da Turma, se por maioria contra o réu, cabem Embargos Infringentes... (esse você conhece do Mensalão...). Aliás, não é demais lembrar que este recurso cabe toda vez que os tribunais julgarem por maioria de votos contra o interesse do réu. E, não se esqueça de que de cada decisão cabem Embargos de Declaração (que é diferente dos Infringentes). E Embargos dos Embargos... E Embargos dos Embargos dos Embargos... E tudo isso, nessa loucura toda, não perca de vista, tinha uma finalidade primeira: visava forçar a subida do recurso de Apelação, aquele que, lá atrás, foi interposto da decisão do juiz de primeiro grau... E, subindo a Apelação, começa tudo de novo... com o detalhe que a defesa pode pedir para arrazoar o recurso de Apelação diretamente no Tribunal. Aí o recurso sobe para o Tribunal e depois o Advogado é novamente intimado para apresentar as razões. Apresentadas estas, o recurso que estava no Tribunal desce para a Vara para o Promotor apresentar as contrarrazões. E depois sobe novamente para o Tribunal para dar prosseguimento. E recomeça tudo de novo. Parece mentira. Mas é o que a lei garante no direito brasileiro, ao menos em tese. Calcule os anos. Não se esqueça dos Embargos de Declaração passíveis de serem interpostos de cada uma das decisões que julgou cada um dos recursos. Não se esqueça, também, que cada julgamento desse leva, em média, de quatro a seis meses (eu sei, fui otimista, às vezes é muito mais tempo).

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Para ilustrar o problema, vale citar o processo a que respondeu o ex-Senador Luiz Estevão, acusado, juntamente com o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, pelos delitos de formação de quadrilha, peculato, corrupção ativa, e falsidade documental em fatos ocorridos em 1992, relacionados à construção do prédio novo do TRT de São Paulo. Como amplamente divulgado nos meios de comunicação, a notícia dos delitos somente veio à tona em 1997, quando foi instaurado o inquérito para investigá-los. Como Luiz Estevão foi eleito Senador em 1998, passou a ter prerrogativa de foro junto ao STF. Teve seu mandato de Senador cassado no ano de 2000, fazendo com que a investigação saísse do STF e retornasse ao primeiro grau. Nesse mesmo ano, foi oferecida a denúncia em primeiro grau, tendo ele sido absolvido nessa instância no ano de 2002. Houve recurso do Ministério Público e sua condenação veio no julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no ano de 2006. Pena de 31 anos de reclusão, somando os inúmeros crimes a que foi condenado. Daqui em diante, foram outros 31 (trinta e um) novos recursos interpostos pela defesa de Luiz Estevão. A decisão confirmatória da condenação veio no STJ em 2012. A sentença definitiva ainda não tinha ocorrido em fevereiro de 2016. Dois delitos já estão prescritos (quadrilha e falso documental), fazendo com que a pena diminua de 31 para 24 anos. Outros dois crimes (peculato e estelionato) prescreveriam em 2018, caso o Supremo Tribunal Federal não tivesse recentemente alterado seu entendimento quanto à compreensão da expressão “trânsito em julgado” na Constituição. Sobraria apenas a condenação pela corrupção ativa. No mesmo caso, o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto foi condenado, porém, foi beneficiado com a prescrição dos crimes de peculato e corrupção passiva, deixando de cumprir penas que somavam 16 (dezesseis) anos.

E aqui cabe um parêntese: a recente decisão da Suprema Corte brasileira estabelecendo a possibilidade de se dar início à execução da pena a partir da decisão proferida pelo segundo grau de jurisdição parece ter vindo na linha de tentar resolver o problema da morosidade e não efetividade da Justiça criminal, notadamente para crimes do colarinho branco. Porém, essa nova interpretação é motivo de inúmeras críticas por violar o texto da Constituição e já existe projeto de lei no Congresso para anular o seu efeito (Projeto de Lei 4577/2016, do Deputado Federal Wadih Damous, do PT/RJ) dando aos Recursos Especial e Extraordinário efeito suspensivo. Portanto, ainda que, por ora, diante da nova compreensão da Suprema Corte, o problema da pouca efetividade da Jurisdição penal tenha sido diminuído, tal posição pode ser revista em breve, pela via do Poder Legislativo.

Para além do amplo número de recursos também é necessário vincular a discussão com a crônica carência estrutural das instâncias formais de controle da criminalidade (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário) que repercutem na constatação de serem insuficientes os lapsos prescricionais da pretensão punitiva que hoje estão previstos em lei (prescrição ocorre quando se dá o exaurimento do tempo máximo que o Estado tem para punir quem cometeu o delito). E, se formos levar em conta determinados nichos de criminalidade, notadamente aquela elitizada, isto é, dos crimes do colarinho branco, a prescrição nos moldes atuais acaba sendo uma forte aliada de quem cometeu tais delitos. Ela fatalmente aparecerá em algum momento, afinal, vários anos se arrastam até o fim de toda possibilidade recursal.

Some-se a isso o fato de que as penas mínimas destes crimes são todas abaixo de quatro anos e costumam operar pelo marco prescricional de oito anos previsto para crimes com penas superiores a dois anos e que não excedam a quatro, conforme previsto na “tabela” do art. 109 do Código Penal. Com efeito, a maior pena mínima de crimes do colarinho branco no Brasil não passa de três anos. E por que a pena mínima é importante? Porque no Brasil a tradição interpretativa de fixação das penas impõe ao Juiz partir sempre do mínimo legal e, no Brasil – e só no Brasil –, depois que a pena é fixada os prazos prescricionais são recalculados de forma retroativa agora pela pena em concreto. Ou seja: se ao longo do processo os prazos eram considerados pelo máximo da pena prevista em abstrato na lei (e isso implicava num determinado marco prescricional na “tabela” de prazos do art. 109 do Código Penal), ao final do processo os prazos são revistos e recalculados agora pela pena em concreto aplicada no processo. Com isso, os marcos prescricionais caem significativamente. Assim, por exemplo, se ao longo de um determinado processo, o Estado tinha, digamos, dezesseis anos para chegar ao fim por o prazo era calculado pela pena máxima prevista na lei em abstrato, como ocorre no crime de peculato que tem pena máxima de doze anos, ao final do processo, agora pela pena em concreto aplicada, pode ocorrer lá se “descubra” que esse prazo não era de dezesseis, mas de oito anos. Assim, olhando para trás, conclui-se, agora, que o Estado não tinha interesse de ter avançado no processo, pois ele extrapolou o limite que – repita-se: somente agora – se sabe deveria ser de oito e não de dezesseis anos. É o que se chama por aqui de “prescrição retroativa” (tema para outro artigo...).

Com essa complexidade toda, mesmo que se dobre, triplique ou quadruplique a estrutura do Poder Judiciário, não se conseguirá levar a questão a bom termo antes de uns dez anos de discussão. Ademais, não se ignora que não há dinheiro suficiente para que uma estrutura ideal seja concretizada e, mesmo que houvesse, ainda assim, os Tribunais Superiores continuariam a servir como “funis” de apreciação dos recursos especiais e extraordinários. O volume de feitos lá é assustador. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal, que é composto de onze ministros, recebeu 93.000 (noventa e três mil) processos para julgar. Sem contar o acumulado dos anos anteriores e sem contar os processos de competência originária (foro privilegiado) que devem ser instruídos no STF. Quantos ministros seriam necessários na Suprema Corte para julgar com um mínimo de cuidado e atenção 93 mil processos ao ano? Pois o mesmo ocorre no STJ.

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Portanto, ainda que seja importante ampliar as estruturas das instâncias formais de controle da criminalidade, vale o registro que para resolver o problema da morosidade e da não efetividade da Justiça criminal notadamente em crimes do colarinho branco é preciso olhar para o todo do problema. No caso da Suprema Corte, por exemplo, não é possível que ela continue com a amplíssima competência que possui hoje. Se a Constituição Brasileira se inspirou no modelo norte-americano de Suprema Corte, e lá esta julga, em média, apenas cem processos por ano, algo por aqui precisa ser repensado e redirecionado urgentemente.

Alguém ponderará: sim, mas como explicar que o Brasil tem cerca de 600 mil presos e é a quarta maior população carcerária do mundo? A resposta é simples: essa sistemática recursal toda não costuma valer para réus pobres ou “remediados”. Estes, normalmente, não usam toda a gama de recursos e, assim, acabam compondo a extragrande maioria da estatística dos 600 mil presos brasileiros, principalmente em razão do custo dos recursos (honorários advocatícios costumam ser cobrados por fases processuais), somado à falta de estrutura das Defensorias Públicas em boa parte do país. E, ao que parece, no entanto, não interessa ao Estado realmente resolver esse problema, pois o projeto de novo Código de Processo Penal que poderia organizar um pouco essa questão, e que teve agora – em fevereiro de 2016 – retomada sua discussão no Parlamento por iniciativa do Presidente da Câmara Eduardo Cunha, não toca com a seriedade necessária nesse e noutros pontos relevantes.

Assim, o que temos aqui é o paradoxo de que, ao mesmo tempo em que é necessário criar um novo recurso para a defesa nos casos de condenações que venham a ocorrer apenas em grau recursal, também é necessário simplificar e reorganizar a sistemática recursal brasileira. Acabar com os Embargos de Declaração, por exemplo, seria um bom começo. Se a decisão é omissão ou obscura ela é nula. Não há, portanto, porque forçar um recurso que sabemos todos tem pouquíssima acolhida nos Tribunais para depois ingressar com outro para pedir praticamente a mesma coisa. Não há porque, igualmente, manter-se a ampla possibilidade de decisões monocráticas e seus respectivos recursos internos nas diversas Cortes. Não há porque continuar exigindo duplo grau de admissibilidade recursal no juízo “a quo” e no “ad quem”, pois o recurso sobe de qualquer jeito. Não há porque manter-se prazos duplos para o recurso de apelação: um para a petição de interposição e outro para razões; melhor seria prazo único para ambos. Não há porque manter a possibilidade da defesa arrazoar o recurso apenas diretamente no tribunal (a razão de ser dessa regra, criada na década de 1960, e relacionada à dificuldade de acesso dos advogados do interior à jurisprudência e doutrina, não mais se justifica). Não há porque manter a competência do Supremo para conhecer de todo e qualquer recurso extraordinário. Não há porque manter a competência por prerrogativa de função nos moldes de hoje. E por aí vai...

Enfim, está na hora de repensar – e fazer – alguma coisa para orientar o processo penal brasileiro também à luz da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais, fazendo com que ele seja capaz de ser igualmente efetivo quando opera contra criminalidade do colarinho branco, e a reforma do Código de Processo Penal que agora retomou seu curso no Parlamento parece ser um excelente momento para tanto. Resta saber se nossos Deputados irão compreender o tamanho do problema e pensar um processo penal que sirva, efetivamente, para avançar no processo civilizatório da nação...

[ 1] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Mohamed vs. Argentina. Sentença de 23 de novembro de 2012. Disponível em http://www.csjn.gov.ar/data/cmcidh.pdf , acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 90, p. 30. Tradução nossa. No original, em espanhol: La Corte hace notar que este caso presenta la particularidad de que al imputado se le siguió un proceso penal de dos instancias, y fue condenado en segunda instancia por un tribunal que revocó la decisión absolutoria del juzgado de primera instancia. Para determinar si al señor Mohamed le asistía el derecho de recurrir del fallo ante juez o tribunal superior, corresponde determinar si la protección consagrada en el artículo 8.2.h de la Convención Americana permite una excepción, tal como alega Argentina, cuando el imputado haya sido declarado condenado por un tribunal que resuelva un recurso contra su absolución.

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[2] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Mohamed vs. Argentina . Sentença de 23 de novembro de 2012. Disponível em http://www.csjn.gov.ar/data/cmcidh.pdf , acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 92, p. 30. Tradução nossa. No original, em espanhol: Teniendo en cuenta que las garantías judiciales buscan que quien esté incurso en un proceso no sea sometido a decisiones arbitrarias, la Corte interpreta que el derecho a recurrir del fallo no podría ser efectivo si no se garantiza respecto de todo aquél que es condenado, ya que la condena es la manifestación del ejercicio del poder punitivo del Estado. Resulta contrario al propósito de ese derecho específico que no sea garantizado frente a quien es condenado mediante una sentencia que revoca una decisión absolutoria. Interpretar lo contrario, implicaría dejar al condenado desprovisto de un recurso contra la condena. Se trata de una garantía del individuo frente al Estado y no solamente una guía que orienta el diseño de los sistemas de impugnación en los ordenamientos jurídicos de los Estados Partes de la Convención.

[3] Equivalente, no direito brasileiro, ao Agravo de Instrumento para forçar a subida do Recurso Extraordinário denegado na instância de origem.

[4] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Mohamed vs. Argentina . Sentença de 23 de novembro de 2012. Disponível em http://www.csjn.gov.ar/data/cmcidh.pdf , acesso em 06 de novembro de 2015, parágrafo 112, p. 35. Tradução nossa. No original, em espanhol: Por las razones expuestas, la Corte concluye que el sistema procesal penal argentino que fue aplicado al señor Mohamed no garantizó normativamente un recurso ordinario accesible y eficaz que permitiera un examen de la sentencia condenatoria contra el señor Mohamed, en los términos del artículo 8.2.h de la Convención Americana, y también ha constatado que el recurso extraordinario federal y el recurso de queja, en tanto salvaguarda de acceso al primero, no constituyeron en el caso concreto recursos eficaces para garantizar dicho derecho.

[5] CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Mohamed vs. Argentina . Sentença de 23 de novembro de 2012. Disponível em http://www.csjn.gov.ar/data/cmcidh.pdf , acesso em 06 de novembro de 2015, p. 54. Tradução nossa. No original, em espanhol: adoptar las medidas necesarias para garantizar al señor Oscar Alberto Mohamed el derecho de recurrir del fallo condenatorio emitido por la Sala Primera de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional el 22 de febrero de 1995, de conformidad con los parámetros convencionales establecidos en el artículo 8.2.h de la Convención Americana, en los términos señalados en los párrafos 90 a 117 y 152 de la presente Sentencia.

[6] SUTHERLAND, Edwin H. El Delito de Cuello Blanco. White Collar Crime. The Uncut Version. Tradução para o espanhol de Laura Belloqui. Buenos Aires: B de F, 2009.

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*Rodrigo Régnier Chemim Guimarães: Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.