Kelsen foi um dos colaboradores da Constituição austríaca de 1o/10/1920. Desde 1911 ele já era professor na Faculdade de Direito de Viena. Em 1917 foi convocado e serviu como assessor jurídico do Ministério da Guerra e em 1918 foi convidado para colaborar na realização da Constituição da Áustria. Entre as suas principais colaborações, destaco a ideia acerca da Corte Constitucional, isto é, um órgão judicial e exclusivo para exercer o controle de constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo. Se considerarmos que este modelo de controle, concentrado em um órgão judicial, ainda prevalece em muitos sistemas de justiça, inclusive no Brasil, então a influência de Kelsen na teoria constitucional permanece vigorosa.

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Tal fato se verifica em posições firmes de alguns dos atuais ministros do Supremo Tribunal Federal, como Gilmar Ferreira Mendes, em favor de uma ainda mais vigorosa concentração do controle de constitucionalidade nesta Corte [1], a despeito da história e da experiência constitucional brasileira acerca do controle difuso da constitucionalidade. Ou seja, o quase centenário modelo pensado por Kelsen ainda tem força no Brasil e em outros países e seus respectivos sistemas de justiça. Não obstante, o modelo pensado por Kelsen concentrasse o controle da constitucionalidade em um único órgão de caráter jurisdicional, ele sugeria procedimentos (e é isto que quero sublinhar neste artigo) que promovessem maior diálogo na tarefa de atribuir sentido à Constituição e obrigá-la em relação às demais espécies normativas. Tais procedimentos dialógicos, no entanto, pouco reverberaram ou reverberam no modelo concentrado brasileiro.

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Para tanto, farei uma brevíssima retrospectiva acerca do controle de constitucionalidade nas Constituições brasileiras, partindo de 1920, ano em que a Constituição austríaca foi promulgada. Pois bem, em 1920 a Constituição vigente no Brasil era a de 1891 e não havia qualquer previsão acerca do controle judicial de constitucionalidade.

Na Constituição de 1934, no entanto, no art. 12, par. 2o, surge a previsão de controle judicial pela Corte Suprema (esse era o nome), somente em caso de intervenção federal. Nesta circunstância, o Procurador Geral da República provocaria diretamente a Corte para sua declaração em favor ou não da inconstitucionalidade. Tratava-se de representação interventiva que, embora relacionada a um conflito concreto na Federação, teve a sua compreensão e processamento pela Corte Suprema, através do controle concentrado e, ficcionalmente, abstrato. Por outro lado, a Constituição de 1934 previa nos arts. 91 e 96, respectivamente, a comunicação ao Senado, através do Procurador Geral da República e a suspensão por aquele, em todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional. Isto é, nos casos concretos em que, incidentalmente, através de recurso extraordinário, a Corte Suprema declarasse a inconstitucionalidade de lei, esta poderia ter a sua aplicação suspensa por decisão legislativa do Senado. Ainda, o art. 179 previa a cláusula de reserva de plenário (maioria absoluta) do STF para declaração de inconstitucionalidade.

As Constituições posteriores de 1937 e 1946, com algumas modificações, mantiveram a ação interventiva como um processo abstrato de controle de constitucionalidade, ao mesmo tempo que, igualmente, previam a declaração incidental de constitucionalidade via recurso extraordinário. O que me interessa salientar é que, desde da segunda Constituição da República, mesmo sem adotar o controle abstrato, conforme pensado por Kelsen para a Constituição Austríaca, já havia vários elementos em nosso sistema que antecipavam uma certa adesão à ideia até que, em 1965, a emenda 16, introduziu, o controle abstrato propriamente dito, concentrado no Supremo Tribunal Federal, para aferir a constitucionalidade ou não de leis ou atos normativos federais ou estaduais.

Tanto é que a função do procurador-geral da República como advogado da Constituição, tal qual pensara Kelsen, passa a ficar muito mais explícita. De certa forma, esse papel já era desempenhado por aquele na representação interventiva, isto é, o Procurador provocava a instauração do processo, tendo em vista a ofensa de um princípio sensível da Constituição e, assim, buscava dirimir o conflito federativo mediante intervenção ou não, e, também, defender a Constituição. O procurador representava o interesse da União em face do Estado-membro que tivesse desrespeitado um princípio sensível da Constituição e, também, atuava como defensor da Constituição, representando o interesse geral e abstrato de defesa da sua supremacia. Havia, na minha opinião, uma certa “esquizofrenia” em relação à função do procurador-geral quando as duas situações poderiam ser verificadas na representação interventiva.

Porém, depois da emenda de 65, restou claro que na ação constitucional que promovia especificamente o controle abstrato e concentrado de normas, o Procurador seria o advogado da Constituição, tal qual pensara Kelsen (2007, 175), segundo o qual, uma instituição totalmente nova, mas que mereceria a mais séria consideração, seria a de um defensor da Constituição junto ao tribunal constitucional, o qual como o ministério público no processo penal, introduziria ex officio o processo de controle de constitucionalidade dos atos que estimasse irregulares.

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A Constituição de 1967 e nos mesmos termos a Emenda n. 1 de 1969, segundo os artigos 114, I, l e 119,I, l respectivamente, determinava que somente o procurador da República poderia propor, em face do Supremo Tribunal Federal, a representação de inconstitucionalidade. Ou seja, até a promulgação da Constituição de 1988 apenas por iniciativa do procurador-geral da República, que detinha o monopólio da ação, poderia a Corte ser diretamente provocada para fazer a revisão judicial de leis e atos normativos federal e estadual.

Essa breve narrativa retrospectiva do controle de constitucionalidade no Brasil até a Constituição de 1988 se justifica pelo fato de que ao se adotar o modelo de controle abstrato e concentrado, as constituições brasileiras e seus intérpretes foram tímidos em relação ao que o próprio Kelsen propunha, particularmente, em relação aos legitimados para ação.

Além do Ministério Público, Kelsen (2007, 176) afirma que seria extremamente importante conceder também legitimação a uma minoria qualificada do Parlamento. E isso tanto mais que a jurisdição constitucional (...) deve necessariamente servir, nas democracias parlamentares, à proteção de minorias. Ainda, Kelsen (2007, 176) previa a possibilidade de o tribunal constitucional introduzir ex officio o processo de controle com relação a uma norma sobre a qual pairasse dúvida sobre a sua constitucionalidade. Isto significa que em um caso concreto em que a legalidade é questionada imediatamente e a constitucionalidade mediatamente, poderia o tribunal constitucional suspender o processo relativo ao caso concreto e proceder, ex officio, ao exame da norma a ser aplicada no caso concreto. Também sustentava Kelsen que as pessoas cujos interesses constitucionalmente protegidos foram lesados poderiam provocar o tribunal constitucional, em relação aos atos das autoridades administrativas.

Não obstante a Constituição de 1988 tenha ampliado o rol de legitimados para propositura de ação direta de inconstitucionalidade - tendo mantido ação/representação interventiva somente pelo Ministério Público (art. 129, IV) – ela adotou um modelo de controle abstrato e concentrado (exceção feita para a ADPF em que não faz sentido falar em controle abstrato), cujos procedimentos (ver art. 103 e parágrafos da Constituição Brasileira) pouco colaboram para uma maior democratização da jurisdição constitucional. Além disso, a interpretação que o próprio Supremo Tribunal Federal tem acerca de si e dos seus procedimentos reforça, ao inverso do que pretendia Kelsen, uma ideia de concentração do controle das leis que confunde a defesa da constituição com a defesa da própria Corte. Ao longo dos vinte e seis sete da Constituição de 1988, a sua supremacia acabou se confundindo com a supremacia do Supremo Tribunal Federal.

É notável como Kelsen tinha, a sua forma, compromisso e preocupação com um formato de controle a ser exercido pela jurisdição constitucional que, a despeito de ser concentrado e abstrato, não em-si-mesmava a Corte. Ou seja, defendia ele que o processo diante do tribunal constitucional observasse o princípio da publicidade dado o interesse geral dos casos, de forma que não se poderia excluir em princípio a publicidade no procedimento, que somente uma audiência pública garante . Poderíamos até perguntar se o julgamento pelo colégio de juízes também não deveria ocorrer em audiência pública. (Kelsen, 2007, 177) (grifei)

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Também observava Kelsen (2007, 178) que em casos como o da anulação das leis e dos tratados internacionais aquela só entraria em vigor após a expiração de certo prazo a partir da publicação, quando mais não fosse para dar ao Parlamento a possibilidade de substituir a lei inconstitucional por uma lei conforme à Constituição, sem que a matéria regulada pela lei anulada ficasse sem disciplina durante um tempo relativamente longo. Para Kelsen, a jurisdição constitucional é fundamental para uma República democrática, pois possibilita o controle da regularidade das funções estatais e, também, é meio eficaz de proteção das minorias contra os atropelos da maioria (2007, 181).

A Constituição austríaca, na esteira de Kelsen, atribuiu a função de garantia da Constituição a um tribunal independente, o Tribunal Constitucional, ao qual é dado o exercício da jurisdição constitucional. Segundo Kelsen, este tribunal deve decidir sobre a constitucionalidade dos atos do parlamento, e dos atos do governo que tenham sido contestados, de forma a declarar a sua nulidade. Interessante que ele mesmo reconhece que se pode discutir sobre a conveniência ou não desta instituição e que ninguém afirmará que se trata de uma garantia absolutamente eficaz em qualquer circunstância. (Kelsen, 2007, 248) Aqui um excelente insight para pensarmos o nosso Supremo Tribunal Federal.

[1] Ver o caso da tese da mutação constitucional em relação ao art. 52, X da CF.

Bibliografia:

Kelsen, Hans. Jurisdição Constitucional. Trad. Alexandre Krug (alemão), Eduardo Brandão (italiano), Maria Ermantina de A. P. Galvão (francês). Revisão técnica Sergio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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_____. Kelsen, Hans. Quien deve ser el defensor de la Constitución? Trad. Roberto J. Brie, Madrid: Tecnos, 1995.

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*Vera Karam de Chueiri: professora associada de direito constitucional do departamento de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (nos programas de graduação e pós-graduação em Direito) e vice-diretora da Faculdade de Direito. Coordena o Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD. Foi editora da revista da Faculdade de Direito da UFPR (2008-2013). Tem experiência na área de Direito Constitucional , Filosofia do Direito e Direito e Literatura atuando principalmente nos seguintes temas: poder constituinte, estado de exceção, constitucionalismo e democracia, teoria das decisões judiciais (Dworkin), justiça de transição, direito e desconstrução. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.