Ainda sob os efeitos da viagem, os recém-chegados submeteram-se às preleções do inspetor-chefe do Instituto São Francisco Xavier. Oscilando entre orientação e ameaça, Getúlio discorreu sobre as normas da casa, tendo em contrapartida uns olhares dispersos e sonolentos. O palavrório mareou um pouco os meninos e aquele blá-blá-blá era deprimente, tanto mais devido ao esforço mental de quem ainda tentava entender o que se passava.
O dormitório ficava entre a cozinha e o almoxarifado. As paredes de madeira sem forro deixavam o telhado à mostra. Para acender a lâmpada de luz bruxuleante era preciso juntar dois fios desencapados. O banheiro era uma casinha de madeira a 50 metros num ponto escuro perto do rio. Muitos preferiam mijar na cama a correr o risco de se deparar com o lobisomem que diziam rondar o lugar. Daí o nome de “dormitório dos mijões”.
3 - O convite ao crime
A vacuidade e a monotonia tornavam os dias tediosos e a rotina seguia bocejante
Leia a matéria completaNo segundo dia, um chamado urgente interrompeu a aula. Teriam de comparecer ao saguão. Getúlio procedia a revista todas as manhãs e quem tivesse mijado na cama tinha de tomar banho gelado no rio. A cama de dois recém-chegados amanheceu molhada, e isso exigia providências.
– Aqui temos regras, não deixei isso claro? – esbravejava o inspetor. – Sei quem são os mijões, mas o recado serve pra todos.
Alceu ficou irrequieto, era um deles.
– Não deu pra segurar – cochichou para Celsinho.
– Fica quieto que ele vai escutar.
O inspetor voltou os olhos para os dois. A rudeza com que os tratava era lendária. Tipo grotesco, por imperícia tratava-os como enjeitados. A índole rebelde do guri contribuiu para o desenrolar dos fatos. Cabeça baixa, Alceu suspendeu os olhos e encontrou em Getúlio a expressão contrafeita. Era característica do menino olhar desse jeito, o que dava a impressão de fitar o outro de maneira provocadora. O inspetor tomou o olhar por ofensa.
– Os mijõezinhos têm alguma coisa pra falar?
Alceu cerrou os punhos, o que foi percebido. O embate dialético para o qual se julgava preparado apesar da pouca idade não iria acontecer. E não porque o inspetor temesse o diálogo e o evitava tão claramente, mas porque estava convencido da autoridade exercida sem tropeços. Desacostumado com esse comportamento abusado e irônico, não havia porque negar-se a colocar em prática seus métodos, e sempre era bom que os desavisados tivessem prova de sua superioridade. Era pedagógico, portanto.
– Temos um valentão aqui. Dê um passo à frente.
O guri moveu o corpo na intenção de obedecer. Sentiria a superioridade que o cargo conferia àquele homem, um desses sujeitos capazes de arruinar órfãos. Sabia muito bem que iria incomodá-lo e mesmo arriscando-se a pagar pelo ato insistiu em fazê-lo. Deu um passo à frente, a cabeça baixa, os olhos suspensos. O homem o olhou superior. O menino, com essa audácia infantil que faz cometer asneiras ou leva a grandes triunfos pessoais, elevou a voz acima do desprezo.
– Ninguém fez por querer. É que não deu pra segurar.
– Tu também se faz de besta – Formigão cochichou em reprimenda.
O inspetor baixou a cabeça para vê-lo melhor.
– Quem você pensa que é?
– Meu nome é Alceu.
– Não te ensinaram como se comportar?
– Mas não deu pra segurar.
Era inútil argumentar. Havia subestimado a veia do destempero naquele homem. Demasiado sanguíneo em seu transe, ele só precisava de um pretexto. O menino o deu.
– Vai aprender quem manda.
As sílabas se derretiam no ácido da saliva. O primeiro soco chegou sem aviso; depois outro, e ainda um terceiro. Caído, Alceu sentiu a chibata arder nas pernas e nas costas. No chão, deparou-se com a insignificância, aquele ponto qualquer entre a orfandade e a adolescência. Houve mais chutes e socos contra o corpo miúdo do que qualquer um ali poderia esperar. Todos em volta reprimiam o horror. O medo tinha se depositado como um sedimento no fundo da alma.
– Não vai responder? Quem manda aqui?
– O senhor – murmurou Alceu.
Patife infame, era disso que queria chamá-lo.
– Mais alto.
– O SENHOR!!!
Num acesso de fúria, ele atirou você e o Paulinho num riacho do lado de casa e eu tive que pular para salvar vocês dois.
O inspetor exibia o olhar de satisfação. Os militares haviam usurpado o poder um ano antes e Getúlio reproduzia a figura de um ditador menor naqueles dias em que os grandes déspotas grilavam a nação. Acreditava desempenhar bom serviço no controle dos ânimos daqueles desajustados mirins que poderiam vir a dar problemas se não fossem postos logo no cabresto. Precisava sufocar futuras dissensões, ajustar a conduta dessa raça enquanto era tempo.
Havia ainda o fator moral. Submetê-los era também uma forma de aliviar os recalques, pois seu ódio estava mesclado com a inveja. Esses meninos tinham um futuro, e, por mais que isso não parecesse grande coisa, havia neles uma possibilidade melhor do que ele tivera um dia. Um deles, qualquer um, poderia dar a sorte de vir a ser o que o inspetor sonhara um dia para si. Para manter o mando, necessitava de um objeto no qual desafogar as frustrações. Os meninos estavam sempre à mão.
À noite, altos de pensamentos, os meninos conferenciavam de maneira conspiratória, fartos da lenga-lenga daquele estúpido. Primeiro o amarrariam num tronco e devolveriam em dobro as chibatadas. Imaginavam modos diferentes de infringir martírio. Forca, guilhotina, fuzilamento, cada um trabalhava com o repertório imaginativo de que dispunha.
Numa vingança íntima, o inspetor recebeu a alcunha de Paxá por causa do hábito de circular pelos corredores com uma toalha enrolada na cabeça. Os meninos zombavam dele às escondidas. Alguns até o imitavam desfilando no dormitório levando uma toalha na cabeça. E riam da figura quixotesca até brotar lágrimas. Era um sujeito risível, no fim das contas.
As autoridades chamavam aquele lugar de abrigo e ao que parecia davam um ar de normalidade para a coisa toda. Consentiam talvez por omissão, talvez por sentirem que as habilidades de Getúlio pudessem ser úteis, em especial naqueles tempos em que a tirania era regra. Ele exercia com rigor seu papel, enquanto lá fora os verdadeiros senhores operavam as questões maiores.
Concluído o primário, Alceu escapou de Getúlio ao ser levado para um internato no Campo Comprido, em Curitiba. Chegou num dia e na manhã seguinte um ônibus da Lapeana o levaria a Guaratuba junto com outras crianças. Todo amabilidade e mesuras, ganhou a simpatia do diretor da Escola Marcílio Dias, o capitão Antonio Amaury Dietrich.
Levantava-se às 7 horas, tomava café e se dirigia ao curral para ordenhar Chiquinha e Araponga, as vacas leiteiras do capitão. Enchia as garrafas e fazia as entregas numa bicicleta. Depois, com a manhã livre, ia à praia ou tomava sorvete no bar da Dona Marika. Ao meio-dia almoçava com o capitão e ia para o ginásio. O capitão tinha uma filha, Márcia, uma menina loira com quem Alceu passeava na praia de mãos dadas feito irmão mais velho. A vida tinha ficado boa de repente. Não por muito tempo.
As crianças sob a tutela do Instituto de Assistência ao Menor eram despachadas da noite para o dia sem um aviso. Alceu viveu nesse vaivém até os 17 anos, quando concluiu o ginasial no Patronato Santo Antônio, em 1972. Depois de um ano na Casa do Adolescente, prestou o serviço militar no 5.º Batalhão Logístico, onde ficou de janeiro de 1974 a março de 1975 — um ano, um mês e 25 dias.
Paulinho esteve no 20.º Regimento de Infantaria. Juntos, descobriram o paradeiro da mãe e foram atrás dela em Paranaguá. Ela havia se amasiado e teve seis filhos com o caminhoneiro Antenor Silva. A mãe guardava um silêncio incômodo, mas a vontade de saber era demais e Alceu insistia. Especulava sobre o passado como se buscasse a si mesmo. Movida pela insistência do irmão, Maria revelou que o pai era violento e os gêmeos só estavam vivos por intervenção dela.
– Num acesso de fúria, ele atirou você e o Paulinho num riacho do lado de casa e eu tive que pular para salvar vocês dois – Maria relatou dando ênfase ao ato de bravura.
Com a mãe faltava vínculo, com a irmã as discussões eram frequentes. Não havia motivo para ficar, e Alceu venceu os 50 km de Paranaguá a Guaratuba, onde encontrou uma guarita do Corpo de Bombeiros desocupada no pé do Morro do Cristo. Acordou de manhã com a abordagem dos sargentos Rubens e Bruno, do cabo Luisão e do soldado Tito. Explicou-se em curtas palavras e foi levado ao delegado João Alfredo Lopes, que o encaminhou para um emprego no Supermercado Moby Dick, de Aldo Abbage. O mercado faliu e Alceu passou a trabalhar na Padaria Ki Pão.