-Hum! Acho que já ouvi falar de você – disse o delegado Henrique Alexandre Medina ao colocar os olhos no papel sobre a mesa.
Ele trocou meias palavras com os policiais, depois fixou os olhos no preso, sacudiu a cabeça com ar de reprovação e voltou a falar com voz afetada.
– O que você pretende voltando a esta cidade?
As palavras pareceram inúteis e Alceu ficou indiferente. O delegado engrossou o tom da voz e sentenciou.
– Joguem ele na cela que depois vejo o que fazer.
5 - A mãe das ruas
A vida seguiu com preços altos. Alceu tinha 29 anos e, em janeiro de 1984, se viu na condição de morador de rua
Leia a matéria completaNa cela havia um rapaz assustado que levava nas mãos um isqueiro e uma carteira de cigarros. Alceu correu os olhos e viu num canto uma pilha de jornais e revistas. Uma ideia ocupou sua mente. Era noite escura quando pôs o plano em ação. Investiu contra o rapaz, atirando-o contra a parede.
– Você vai me ajudar a fugir daqui, senão eu te mato!
Trêmulo, o rapaz seguiu as orientações. Improvisou tochas com jornais e revistas. Dependurado na grade, Alceu conseguiu abrir um rombo no forro apodrecido. Caía uma carga d’água e a chuva abafou o barulho da última tábua rebentada. Subiu e rastejou até a caixa d’água, onde parou quando o rapaz avisou os policiais. Imóvel, ouviu o delegado esbravejando.
– Eu falei para ficar de olho nesse cabeludinho. Avisem a Polícia Rodoviária no Rio da Praia e no ferry-boat. Ele não vai ter como sair da cidade.
Esperou o silêncio. Depois retirou as telhas e caminhou até a antena de televisão por onde desceu, pulou o muro, atravessou a rua. Avistou uma casa desocupada. Entrou pela janela da cozinha, tomou uma ducha quente e adormeceu. Dia claro, acordou com barulho na porta da frente. Abriu a porta dos fundos que dava para a praia e saiu em desabalada carreira. O soldado Waltrick e o cabo Luisão atiraram. Alceu tropeçou num monte de areia e caiu. Waltrick fez mais um disparo quase à queima-roupa. A bala passou raspando no mamilo direito, deixando um buraco na jaqueta e uma cicatriz permanente.
– Olha, caboclo, você está incomodando. Esta é a última vez que passa no meu território – alertou o delegado.
Alceu foi parar de novo no presídio do Ahú. Permaneceu algumas horas no chiqueirinho, uma sala recoberta de grades na entrada do presídio, aguardando a designação da galeria para onde iria.
– E aí, ‘trabalhador’, já jantou?
Girou os olhos vesgos de curiosidade e quando o sujeito pôs a cara à vista deixou exposto um rosto vincado pela maldade. Na primeira passagem pelo Ahú, entre 1978 e 1979, Altamiro era um mero guarda de presídio, agora promovido a chefe de segurança. O olhar de Alceu lhe custou um soco na nuca.
– Que é isso? – questionou.
– Que é isso o quê, porra?
– Não precisa bater! Eu não fiz nada.
– Mas que porra! Outro inocente. Alguém aí pode chamar o juiz? – disse o carcereiro com sarcasmo. – Parece que o juiz não está trabalhando hoje – concluiu com uma gargalhada.
Alceu compreendeu que o sujeito tomava as decisões por conta própria. Não necessitava importunar os superiores com questões menores. Durante anos tinha estado ali ensinando àqueles criminosos a decência. Como, pois, se podia consentir que um bandidozinho qualquer viesse a contestar sua autoridade? Alceu resignou-se diante daquele homem cheio de si, não sem antes suspender novamente os olhos.
– Se me encarar de novo a coisa vai ficar pior.
Altamiro era um homem de pouca paciência e nervos expostos. Alceu descobriria a duras penas, porque acabou soltando pesados palavrões que não tardaram a produzir efeito. O carcereiro entrou no chiqueirinho e iniciou a pancadaria. Depois, fez o alerta.
– Daqui você vai direto para a cela-forte, no fundão da quarta galeria. Vai ficar lá quatro meses e, se tiver bom comportamento, vai subir para o fundão da quinta, onde vai ficar mais dois meses. Só depois vai para o convívio, na segunda galeria. Isso é para você aprender a respeitar os funcionários e saber que não está em casa.
Quando a porta de ferro do xadrez se fechou, Alceu se deu conta de onde estava. Não havia janelas, apenas uma portinhola à meia altura por onde passava a comida. A cela úmida ainda rescendia à urina do último desgraçado. Eis que, de súbito, encontrava-se transportado ao túmulo. Um túmulo que mal o comportava em seus 3 metros de comprimento, 1 metro de largura e 1 metro e 85 centímetros de altura.
O cubículo remetia com seu breu à agonia de alguém enterrado vivo. De nada adiantava gritar. Não havia quem escutasse. E se houvesse, faria pouco caso, ou pior, faria troça da desgraça alheia. A rotina do carcereiro e a convicção de que todos que ali estão fizeram por merecer o castigo têm a propriedade de sacar o humano do homem. A pessoa acostuma com a própria dor, por que seria diferente com a dor do outro?
Sobressaltou-se ao recordar que antes dele alguém poderia ter morrido à míngua nesse lugar. Sentiu o sopro da morte misturado ao fedor de mijo e excrementos. Foi invadido por uma profunda sensação de miséria, como se nunca tivesse prestado para nada. Permaneceu em silêncio, a convocar o sono. Não sentiu nada além dos odores ambientes de merda e urina. Tudo bem que nunca foi grande coisa, mas nada poderia ser mais humilhante do que sentir-se parte integrante de uma latrina.
Tentava dar a essas circunstâncias um caráter de evento passageiro. Tomou como uma audácia descer às profundezas onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido. O tempo num lugar desses não é o mesmo de lá de fora. A percepção do tempo varia conforme a sensação que se experimenta, e essa a que estava submetido fazia-o passar mais lentamente. No início até calculava, mas não demorou para que os sucessivos dias iguais alterassem o sentido de tempo.
De repente, o estrondo metálico. A porta aberta o iluminou num canto da solitária, esgotado e com uma lassidão nos membros, incapaz de mover-se. Não dominava os sentidos. Dois carcereiros entraram e os notou apenas como um sonho, não obstante o tenham pegado pelos braços. Os olhos cegados pela escuridão não identificavam nada além de vultos. O corpo carregado parecia desprendido da alma. Custou um esforço alcançar a ideia de como era a vida fora da masmorra. Arrastado à altura do corredor, podia ver as réstias de sol invadindo os vãos das grades. Foram quatro meses enterrado vivo. Ajustando bem as vistas, pode ver como era lindo o sol.
A segunda passagem pelo presídio do Ahú se estendeu de julho de 1980 a janeiro de 1983. A liberdade foi retardada em duas semanas devido a uma situação curiosa. Era 23 de dezembro quando o “chamador” entrou no xadrez da sexta galeria: “Alceu Siqueira Ramos, sua liberdade chegou!” O dia começava bem.
Na Vara de Execuções Penais, o juiz Hirosê Zeni fez as recomendações de praxe. Dali, Alceu foi para a Penitenciária Central do Estado, onde ficaria num xadrez e às 16 horas seria posto em liberdade. Na fila do refeitório, Coquinho e Nego Baiano iniciavam uma briga. O chefe da segurança decidiu punir a todos com três dias de “tranca”. Era o estopim de uma rebelião. Aos gritos, os detentos fizeram reféns os carcereiros que controlavam o acesso às galerias.
Alceu ouviu o alarido no corredor. Homens armados com estoques, barras de ferro e pedaços de pau surgiram na porta. Numa piscadela, as celas estavam todas vazias, um tropel nos corredores. Os detentos encontravam-se num tumulto jubiloso. Um bando de homens feito bestas movidas pelo falso cheiro da liberdade.
Nivaldo Savagin, um dos líderes da rebelião, tomou o controle. Temia que a PM invadisse as galerias e pusesse em curso uma carnificina se algum carcereiro fosse morto. Junto a um portão, dois carcereiros tinham as mãos amarradas para trás e estoques na garganta. Quem os ameaçava era Nego Capim e Nelson Savagin (este, irmão de Nivaldo), temidos pela crueldade. João Carlos Castilho e José Carlos Rodrigues, o Zé do Osso, outros líderes do motim, negociavam com um oficial da PM. Do lado de fora, os repórteres policiais Algaci Túlio, Jotapê e Ricardo Chab acompanhavam a movimentação.
A cavalaria da PM cercou as muralhas, era impossível fugir. Os líderes da rebelião negociaram algumas transferências. Terminada a rebelião, Alceu aguardava numa cela a carteirinha da condicional. O natal se foi, o ano novo também. Sábado à tarde, 8 de janeiro, estava com calção, chuteiras e camisa na quadra de esportes quando foi chamado.
– Alceu Siqueira Ramos, o diretor quer falar com você!
Desconfiado, foi ao gabinete vestido como estava.
– Já arrumou sua roupinha? O seu alvará está aqui!
Recebeu o documento e a carteirinha. Tomou o ônibus até o centro de Curitiba e, repetindo o gesto de anos antes, rasgou o alvará e a carteirinha que revelavam sua condição de ex-presidiário.