No ano em que a menção ao combate à desigualdade entre homens e mulheres foi retirada de vários planos municipais e estaduais de educação, a persistência da violência contra a mulher no país foi o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizado no último domingo (25). A proposta, que para alguns especialistas sinaliza a importância de tratar o assunto, gerou críticas de políticos e pessoas comuns que acusam o Ministério da Educação (MEC) de usar o exame para doutrinação.
Para escrever a redação, os candidatos contaram com uma coletânea de dados que evidenciavam a violência de gênero no país. “Esse tema (violência contra a mulher) precisa ser debatido na escola. Queremos que os jovens melhorem a sociedade e que exista uma superação geracional do machismo. Para isso, eles precisam debater o assunto”, defende Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
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Mulher cuja história inspirou a legislação considera a prova uma oportunidade para medir a percepção dos estudantes sobre o assunto
Leia a entrevista completaNo sábado (24), a prova de Ciências Humanas já havia causado polêmica com uma questão sobre feminismo. A pergunta vinha acompanhada de um texto da filósofa francesa Simone de Beauvoir. Vários parlamentares se manifestaram publicamente em suas redes sociais.
Em um post no Twitter, o deputado federal paranaense Fernando Francischini (PSDB) publicou uma imagem da primeira questão do exame – que citou a filósofa francesa e questionou sobre o movimento feminista – acompanhada da frase: “Típica questão Enem petista! Não serve para ensinar nada, serve para doutrinação e para estimular preconceito contra Pessoas!”.
Em coro, os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marcos Feliciano (PSC-SP) também usaram suas redes sociais para protestar contra a mesma questão. Para os dois, a questão era uma tentativa de doutrinação. Feliciano declarou que a citação de Beauvoir era apenas “opinião pessoal da autora, e me parece que a inserção desse texto é uma escolha adrede [intencional], ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”.
Ele ainda afirmou que ao fazer essa escolha, o MEC passou por cima de milhares de brasileiros que se consideram conservadores e cristãos e tentou “impingir a teoria de gênero goela abaixo, com subterfúgios.”. Já Bolsonaro disse que a “doutrinação imposta pelo PT” seria “mais ou tão grave quanto a corrupção”.
Especialistas refutam a tese da doutrinação
Ao contrário do coro que acusa o MEC e o Enem de doutrinação, a historiadora Máira Nunes, professora do Centro Universitário Internacional Uninter, não acredita que a escolha do tema por si só represente uma possibilidade de mudança concreta, mas ressalta que a importância simbólica da escolha é imensa.
Ideologia?
O exame do Enem também gerou críticas e comemorações na mesma proporção pela utilização de outros autores, como Paulo Freire, Max Weber, Thomas Hobbes e Friedrich Nietzsche – pensadores cujas obras desafiam conceitos do senso comum. A socióloga Marlene Tamanini, da UFPR, pondera que a seleção de autores e obras é bastante heterogênea, inviabilizando críticas generalistas sobre o conteúdo do exame.
“Esses autores discutiram temas distintos em tempos distintos. Eles não falam do mesmo lugar teórico. Há uma imensa confusão de ideias – suas obras sequer conversam entre si. Tampouco são todos de esquerda. Acionar o conceito de ideologia, que nem é parte constitutiva do trabalho desses autores, é ignorância. No sentido de desconhecer a origem de suas ideias”, argumenta.
A socióloga ainda destacou que conteúdos como discriminação, violência de gênero e racismo não são ideologias, mas problemas concretos, aspectos da realidade empírica. “Ninguém ideologiza uma sociedade inteira por abordar temas de direitos humanos na redação e na prova.”
“A pauta dos direitos da mulher e da violência de gênero está dada. As estatísticas são assustadoras e têm sido solenemente ignoradas pelo Congresso Nacional. Faltam políticas públicas, debate, conscientização e educação. O mais importante é que o debate sobre a violência de gênero acontece, está presente na esfera pública mesmo que haja uma mobilização grande para que se silencie sobre. A escolha desse tema é a escolha por debater um problema atual e concreto”, avalia Máira.
A socióloga Marlene Tamanini, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná (UFPR), concorda. “Trazer isso para um exame de alcance nacional, em um momento em que a sociedade tem claros conflitos de gênero é bastante corajoso e absolutamente necessário. Não podemos falar de temas pacíficos sempre. Devemos discutir temas que impedem a democracia. A reflexão política e social é conflitiva mesmo, mas a democracia se produz com múltiplas posições.”
Sobre as acusações de que o Enem estaria tentando impôr uma ideologia de gênero aos estudantes brasileiros, Máira discorda. “É uma reação muito específica de grupos conservadores que recusam a possibilidade de equidade de gênero. Nos últimos anos surgiu uma ‘contraofensiva’ que considera qualquer proposta de crítica social, ideologia. O fato de existir uma linha de pensamento que se recusa a fazer o debate não faz com que ele seja menos atual, como é o caso da violência contra a mulher, a pedofilia ou o racismo.”
Marlene corrobora. “A violência de gênero precisa ser discutida na educação. Ela está na rua, como ameaça e agressão; dentro de casa, matando. Tem que vir também para a sala de aula e espaços institucionais. O MEC tem que propor essas questões, é o que se espera da educação.”
Em coletiva de imprensa concedida logo após o exame, o ministro da educação Aloizio Mercadante defendeu a escolha do tema. Mercadante afirmou que a sociedade brasileira é ainda muito violenta contra a mulher e que é preciso debater o assunto. “Achei um tema excelente, defendo integralmente essa pauta”, disse.
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