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Em O Livro Verde, obra con­­si­­derada a bíblia do governo líbio, o ditador Muamar Ka­­dafi descreve em detalhes co­­mo vê o mundo e propõe for­­mas de reorganizar a so­­cie­­dade

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Na literatura política muito se tem falado de O Livro Vermelho, uma coletânea de citações do líder da revolução chinesa Mao Tsé-tung. Publicada em 1964, a obra de 33 capítulos é uma das mais lidas da história.

Bem menos conhecido que a "cartilha" do comunismo chinês, mas polêmico o suficiente para ter merecido traduções nos principais idiomas do planeta, O Li­­vro Verde, do coronel Muamar Ka­­dafi, conquistou simpatizantes mundo afora. A publicação de 1975 resume o pensamento do líder e desempenha o papel de Constituição da Líbia.

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Traçando um paralelo entre o que prega a obra e o que fez Ka­­dafi durante mais de 40 anos no poder, não é difícil constatar uma grande contradição entre teoria e prática.    

O líder da revolução líbia – hoje em desgraça – condena a democracia representativa e o comunismo. Em contrapartida propõe criar uma sociedade al­­ternativa, uma espécie de terceira via, baseada no governo popular. Após assumir o poder, no entanto, governou absoluto, constituindo um sistema repressivo e patriarcal.

Na primeira parte do livro, Kadafi trata do "problema da de­­mocracia". Sem meias palavras, o coronel diz que a democracia representativa conduz a um sistema ditatorial, elegendo governantes que representam apenas parte da sociedade. Na visão de Kadafi, o partido político também é ditatorial, dado que representa o poder de uma fração so­­bre o conjunto. Não menos condenáveis são as assembleias parlamentares, que não passam de um "meio de usurpar e monopolizar o poder do povo". 

O referendo, no entendimento do coronel, é uma impostura em face da democracia. "O que diz ‘não’ devia poder dar a razão e explicar porque não disse ‘sim’ e o que diz ‘sim’ devia poder justificar a sua escolha", prega.

Como "solução definitiva" ao problema da democracia, Kadafi apresenta os congressos populares, os quais permitiriam a verdadeira democracia direta. Com a administração e a sua fiscalização exercidas diretamente pelo povo, sem intermediários, seria colocado um fim a "todas as formas ditatoriais de governo que dominam atualmente o mundo e que são falsamente batizadas de democracias — do parlamento à seita, da tribo à classe, do sistema de partido único ao bipartidarismo ou ao multipartidarismo".

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Permeando o tom filosófico e o estilo panfletário, Kadafi classifica de injusto e antidemocrático atribuir a um parlamento o direito de legislar para toda a sociedade. No seu entendimento, "a verdadeira Lei de uma so­­ciedade é o costume (tradição) ou a religião; todas as outras tentativas fora dessas duas fontes são inúteis e ilógicas". Com isso, descarta a Constituição como forma de ordenar a Lei da sociedade.

Sobram também "alfinetadas" para a imprensa. Ao defender que uma "pessoa física" ou uma "pessoa moral" devem ter o direito e a liberdade de se exprimir, mesmo que de maneira in­­coerente, Kadafi diz que a im­­prensa, como meio de expressão da sociedade, não pode ter proprietário.

A segunda parte de O Livro Verde trata de Economia. Kadafi elogia a evolução das leis sobre as relações entre capital e trabalho, como o estabelecimento de períodos de férias, salário mínimo, distribuição dos lucros e participação na administração, mas considera as conquistas insuficientes. Para o líder, "os trabalhadores assalariados são uma espécie de escravos" modernos. Como saída, o ensaio político do coronel defende a abolição do sistema assalariado e a volta à lei natural, que regia as relações humanas antes do aparecimento das classes, das formas de governo e das leis elaboradas por homens.

Quanto à propriedade da terra, Kadafi diz que o solo não é de ninguém, nem de particulares nem do Estado. E enfatiza que todas as pessoas têm o direito de utilizar a terra.

Um capítulo da segunda parte do livro é dedicado às ne­­cessi­­da­­des dos se­­res hu­­manos para viver em sociedade. Kadafi frisa que "a liberdade do homem não existe se alguém controla aquilo que ele necessita". Seguindo essa tese, afirma que a habitação e os meios de produção não devem pertencer a terceiros. Na linha dos comunistas, mesmo negando o comunismo, a solução final proposta pelo "iluminado líder" é a abolição do lucro.

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Sempre em tom profético, a exemplo deste trecho – "este livro prescreve o caminho da salvação das massas" –, a obra trata, na terceira e última parte, das relações sociais entre os indivíduos. O texto defende o nacionalismo e a existência de uma religião em cada na­­ção como fator de unidade. Considera ainda o casamento como condição para fortalecer a unidade e promover o crescimento coletivo. "A família é mais importante que o Estado", sen­­tencia.

No tópico sobre a questão de gênero, o coronel ataca a discriminação entre homens e mulheres, o que classifica como "flagrante ato de opressão", mas não concorda com a tese de igualdade absoluta. Kadafi recorre a ginecologistas para afirmar que existem diferenças naturais (biológicas) entre os sexos e que, portanto, é condenável a regra de que a "mulher é em tudo igual ao homem".

As páginas finais são dedicadas a temas como Educação, Mi­­norias, Esportes, Cultura e Artes.

Um detalhe da dura contradição de Kadafi chama a atenção: ao mesmo tempo em que ataca a presença de plateias em shows e jogos, ele construiu estádios e financiou clubes de futebol apenas para atender um de seus filhos, que sonhava ser um craque.

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