| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre - Ilustração: Felipe Lima

Sei não, mas acho que a vi­­da do Roberto Kanzler Bur­­gardt, um sujeito bamba que conheci dia desses, saiu pelo avesso. Curitibano da cepa – de sobrenome germânico e olhos que são dois oceanos pacíficos –, cursou baixo acústico e vio­­lão clássico na Belas Artes. Mas a linha do destino não o le­­vou a nenhuma orquestra de Stuttgart ou a um quarteto de Amsterdã, como acontece vez ou outra na velha escola da Emiliano Perneta.

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Primeiro, Beto bateu estaca em um grupo de heavy metal. Depois se alistou numa daquelas bandas que tiram som até de canos de PVC. Quando o sonho acabou, juntou os cacos e foi ga­­nhar seu pão vendendo motocicletas numa loja do Cabral. Era 1986 e mal podia imaginar que a felicidade lhe abanava o rabo.

Aos fatos. O encontro do mú­­sico com a indústria automobilística se deu em meio à década mais esdrúxula do milênio. Ex­­plica muita coisa. Mas antes disso, aviso que fico de mal se al­­guém jurar que me viu usando uma daquelas horrendas blusas-morcego. Não era eu.

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A propósito, tenho esperança que a turma da banda Denorex 80 decifre o que movia o povo a comprar figurinhas da série "amar é..." e a rir do Tião Macalé, com baba na boca, dizendo "no­­jento". Dá medo só de lembrar. Sei não, o Todo-Poderoso podia ter mandado um castigo sobre o Brasil numa das noites de domingo embaladas pelo seriado Dal­­las. Ou no sábado em que Cláudia Raia casou de véu e grinalda com o Alexandre Frota.

Só não foi um cataclismo porque, como diz Zeca Baleiro, em meio àquelas trevas Mussum popularizou a deliciosa palavra "forévis". E porque havia quem curtisse adoidado a bordo de uma Vespa. Nos anos 80, a motoneta dois tempos e sem correia, inventada na década de 40 pelo italiano Enrique Piaggio, virou celebridade instantânea. É onde en­­tra nosso herói, hoje dono de uma coleção de "lambretas", co­­mo dizem os hereges.

A revendedora de Vespas não era o Eldorado de Roberto. Mas ele deve ter sacado o frescor de liberdade e esquisitice exalado por aquele veículo surgido no pós-Guerra e renascido, por en­­canto, numa época em que não havia guerra nenhuma – a não ser a batalha para manter os cabelos armados.

Pois Beto aprendeu tudo so­­bre as motinhos, da mecânica às manhas para não beijar o asfalto. Quando a onda acabou e a loja quebrou, o músico comprou pe­­ças do estoque, passou o telefone aos clientes e foi-se embora para Pasárgada – leia-se Prado Velho. Lá, abriu sua pró­­pria oficina, onde leva uma vida moderninha ao lado da designer Ana Lúcia Iwata, sua companheira há 28 anos. Na alegria, na tristeza e no conserto das possantes. Captou?

Aqui entre nós, apesar das tirinhas do Dilbert, o mundo ficou meio beje de 1990 para cá. Vieram os yuppies, as raves e aquela náusea que nem Obama sara. Mas a essa altura, o sábio Beto já estava sem lenço e sem documento – a salvo das avaliações do mundo corporativo – atendendo à minoria que, por estilo, se manteve fiel à estética insana da era Xuxa. São caras de opinião: não vendem e não trocam sua Vespa. E são casados com o mecânico.

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"Um deles tinha 15 anos quando o atendi pela primeira vez. Hoje tem 35. Outro é francês e vem uma vez por ano a Curitiba, onde só anda de Vespa. E tem um que trabalha com uma. É ele, a moto e um celular", ilustra o ho­­mem que fez a coisa certa. Seus clientes, seus amigos. Se não for com a fuça, aquele abraço. "A gen­­te anda na contramão da globalização, sabe", avisa Ana.

Em tempo. Duas cachorras completam a cidadela dos Bur­­gardt – uma husky e a guapeca Maria Francisca, a Bisteca, que não gosta de Vespas e se morde de ciúme das 40 motonetas com as quais disputa um minuto de afeto. Ai, ai, nada é perfeito.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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