| Foto: Foto: Daniel Castellano / Ilustração: Benett

Prólogo

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Em oito anos, o veterinário Antônio Carlos Nascimento, da UTP, atendeu e cadastrou 2 mil cavalos criados nas favelas de Curitiba. Num mundo perfeito, os alazões usados pelos carrinheiros na coleta de lixo precisariam comer a cada dia 4 quilos de material energético e beber 30 litros de água. Como não são inquilinos de algum haras, sobrevivem de farelos de pão e de raspas de panela. São desnutridos e desidratados, mas há quem os trate, se der, como vacas sagradas da Índia.

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Judite de Oliveira tem 64 anos, 5 filhos, 28 netos, 4 bisnetos e 1 cavalo. Atende por Tostado – é um zaino sem pedigree, marrom-franciscano da crina ao rabo, tem uma mancha branca na cabeça e pode ser visto pastando às margens do Rio Belém, na altura da Vila das Torres, onde os Oliveira fincaram sua caixa do Correio em 2006.

A família veio da zona rural de Guarapuava e tirando o fato de que lá não pagava aluguel, diz que passa muito bem, obrigado. Na capital, os filhos noras e netos de dona Judite ocupam uma espécie de barracão de cômodos – parecido a um estábulo. Cada peça tem 15 metros quadrados, custa R$ 30 por semana e as da frente dão vista para o Belém e para a PUCPR – que dali mais parece uma nave espacial, a Interprise do Prado Velho.

A matriarca ocupa dois quartos, o que lhe assalta os bolsos em R$ 240 mensais, despesa dividida com um agregado. Judite não pode sair para catar papel todos os dias. Tem um quadro clínico tão delicado que faria um médico proibir-lhe até de secar os cabelos na janela, de modo a livrá-la do vento encanado e da morte súbita. "Tenho sinusite e fraqueza no coração e não ganho nada de ninguém", avisa, ao abrir a porta usando uma tramela aviada com trapos.

Pulso fraco e tonturas, contudo, não a intimidam se o assunto é Tostado, seu improvável animal doméstico. O guapo tem mais comprimento do que qualquer peça do barracão – um coice e mandaria para o beleléu a rala mobília da casa. Mas longe disso. "Ele é como um cachorrinho. Se abana quando me vê", desmancha-se a mulher para quem só se pode viver na cidade grande com a ajuda de um totó que tenha tração nas quatro patas. "O Tostado cuida da gente, a gente cuida do Tostado", repete amiúde. É seu mantra, seu refrão, sua máxima sobre a vida como ela é.

"Tostado" é uma homenagem. Quando vivia no campo, Judite tinha um cavalo do mesmo nome, com sólida folha de serviço. O dó é que o capiau teve de ser vendido nas fuças do caminhão de mudança. Ao adquirir um modelo mais novo – por R$ 1,4 mil, preço de ocasião no câmbio negro das ocupações – decidiu fazer justiça a quem lhe fez tanto bem. Batizou-o de Tostado, e nada de Silver ou Simba, Vizir ou Zorro.

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A contar pela avaliação de Judite e de seu filho João Ivan Ribeiro, 27 anos, o Vane, os dois pangarés equivalem em estatura, natureza e graça. Vane é só elogio. Quando circula com o baio por uma das oito mil ruas da cidade, testemunha a inteligência equina, tal como fizeram um Alexandre, o Grande, um Napoleão. O bicho para por conta quando vê um montinho de papel na calçada. Não dá pinote. E é do tipo que respeita semáforo com a cerimônia de um recém-saído da auto-escola. Em miúdos – faz bonito numa terra cujos motoristas, diz-se, só faltam relinchar.

Pelos cálculos, Tostado carrega diariamente 250 quilos de recicláveis, o que de segunda a sábado equivale a uma tonelada. Para trabalhar como um cavalo, o fiel consome duas sacas de farelo por semana, custo total de R$ 34, valor que Vane leva dois dias para lograr. O resto se gasta com água, muita água, menos para o banho, porque o senhorio não gosta de desperdício, de modo que Tostado não é lá muito atraente.

No quesito despesas, a lógica do carrinheiro é industrial: "É melhor que um carro. Não tem placa nem nada." E humanístico: "O cavalo é o melhor amigo do homem. Só trocava por um emprego registrado". Sem falar no aspecto lúdico-educacional. Jonathan, filho pequeno de Vane, não precisa brincar num insosso cavalinho-de-pau.

O gurizinho, pândego, monta no lombo de Tostado e dá-lhe trote. Faz de conta que é cavaleiro das margens do Rio Belém. Pocotó, pocotó. E que a Vila das Torres é seu reino. Se tudo der certo, quando crescer, tomara Jonathan escreva um conto chamado: "Naquela época tínhamos um cavalo". Quem ler, há de saber que a vida não é de todo tão mal assim.

Em tempo. Curitiba tem 60 mil famílias residentes em ocupações e loteamentos irregulares. Cerca de 5% delas têm um cavalo puxando as finanças domésticas.

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José Carlos Fernandes é jornalista.