Eu, assim como você, piíssimo leitor, não conheci Jesus. Como bem sabemos, 2 mil anos e uns quebrados nos separam dos acontecimentos que dividiram a história da humanidade em duas, feito uma laranja decepada por um facão. Vlapt! Nesse tempo todo, o rosto do Nazareno foi ganhando a cada época um tipo e um talhe, de modo que temos o consolo de, ao longo de nossa curta existência, colecionar uma galeria de "Jesuses".
Nascido na era da cibernética, passei ligeiro pelo Sagrado Coração da minha paróquia mirado de joelhos. Logo fui atropelado pelo Redentor da ópera rock Jesus Christ Superstar. Ainda posso ouvir e ver minha mana Cecília numa coreografia herética para apresentar no colégio. "Jesus Christ, Jesus Christ, who are you? What have you sacrificed?"
Aquilo era demais para a época em que Antônio Marcos botava a mão no cinturão de couro para cantar "Hey, irmão, vamos seguir com fé tudo que ensinou o Homem de Nazaré..." Em termos de cruzes e credos, aliás, oscilamos entre a revolução e o relicário. Na adolescência, o Jesus que mais me dizia era imberbe e sorridente só faltava o All Star. Já a trilha não era "Jesus Cristo não vai passar...", mas o rei Roberto cantando "...tudo que aqui ele deixou não passou e vai sempre existir, flores nos lugares que pisou, um caminho certo pra seguir..."
É apelativo, mas é porreta. Tentei melhorar o repertório estudando a Cristificação do Universo, de Teilhard de Chardin, e sorvendo Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff. De quebra, altos papos sobre A Última Tentação de Cristo, do Scorsese, aquele em que Jesus ganha a inesperada cara do Willem Dafoe. Mas esse Jesus passou, amigo leitor, passou. Dafoe foi substituído pelo astro de Jesus de Montreal, filme de Denys Arcand. A obra mostra as transformações sofridas por um ator depois de encarnar Cristo numa encenação. Graças a ele fui atrás de um Jesus de carne e osso o Aparecido Massi do grupo Lanteri.
Perdão Marco Zeni, mas Massi é o ator mais popular de Curitiba. Vai na padaria e a atendente sabe que vende pão para Jesus é para poucas. Aliás, ele mora nas minhas bandas. É lá que o vejo correndo nas ruas, em cima da pinta. "Óia o Jesus...", a gente diz, como se diante da aparição de um anjo loiro, quebrando a rotina da Praça do Atlético embora o Mestre torça para o Londrina.
Massi não é mais o único Jesus do município. A cidade cresceu. Tem um JC na Boa Vista e outro no Boqueirão, que eu sei. E semana passada conheci o Jesus do Sítio Cercado, o Bairro Novo. O nome do moço é Marcos Antônio Vieira, tem 34 anos, 1,88 metro, 83 quilos, cabelos curtos.
Chegou garoto na vila, vindo de Siqueira Campos, no Norte Pioneiro. Tudo então era plantação de grama. Hoje, é o segundo maior bairro da capital, com 114 mil habitantes. Num único ano, mais de duas mil pessoas se mudam para lá, e não há postinho, nem polícia, nem tubulação de esgoto que dê conta.
Mas Jesus não falta. Ele fez faculdade de Administração, pós-graduação, tem bom emprego e uma casa de encher os olhos. Um dos motivos de sua teimosia em permanecer é que ali, há uma década, não é só o filho trabalhador do seu Francisco e dona Maria Olésia: ele é o cara que na Sexta-Feira Santa mobiliza 7 mil pessoas na Rua da Cidadania do Bairro Novo.
Tirando o aparelho nos dentes, bem parece com Jesus. A peruca que já lhe caiu da cabeça numa das muitas descidas da cruz ajuda. A piazada não perdoa: "E aí, Jesus, susse!" Marcos não é de se gabar, mas sabe o que representa para os mais jovens. Quando faz sua cena preferida a da Agonia no Horto das Oliveiras, em plena Avenida Tijucas do Sul certamente há quem lembre que Cristo venceu cursando escola pública e morando longe.
A propósito, do rápido colóquio com o Jesus do Bairro Novo, concluí seu parentesco com Jesus de Montreal: Marcos nunca mais foi o mesmo depois de ganhar o papel principal. Horas antes do espetáculo, inclusive, recolhe-se tal e qual certa vez. Lá fora, o povo se achega. Tem quem suba nalguma laje para ver. O Márcio vira Caifás, Valtinho vira Judas. Marcos então faz milagre dos lençóis de suas vestes. O Bairro Novo ganha com 2 mil anos num minuto graças ao apoio de amigos como o açougue Big Boi e o salão Requints, entre outros.
Fosse eu da organização, só mudava uma coisa: tascava Roberto Carlos na trilha sonora: "Certo dia um homem esteve aqui, tinha o olhar mais belo que já existiu..." É para chorar, sabe. Hoje é dia é Sexta-Feira da Paixão.
José Carlos Fernandes é jornalista.
Serviço: encenação da Paixão do Bairro Novo. Hoje, às 10 horas, na Rua da Cidadania do Bairro Novo. Entrada franca.