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Marleth Silva

Como se livrar de um baú

Escolhi minha notícia pitoresca do ano, aquela que eu contaria para reavivar a conversa quando o assunto acaba durante as intermináveis festas de fim de ano. A minha notícia é de outubro, quando Millvina Dean, última sobrevivente do Titanic, colocou à venda seus "souvenirs" da grande desgraça para pagar o asilo onde mora. Millvina tem 96 anos e foi a mais jovem passageira do Titanic — era um bebê de dois meses. Estava lá por acaso. Os pais eram ingleses pobres que imigravam para tentar melhorar de vida no Texas. Por causa de uma greve de trabalhadores, o navio em que viajariam não zarpou e a família foi transferida para a terceira classe do Titanic. O pai percebeu o choque com o iceberg e levou a família às pressas para o convés. Millvina, a mãe e o irmão de dois anos foram embarcados no primeiro bote salva-vidas a baixar. O pai morreu. O que ela está tentando vender por R$ 10.550 (3 mil libras esterlinas) é um baú com as roupas que os sobreviventes recebiam ao chegar a Nova York.

No mesmo mês em que ela colocou seu baú à venda, foi lançado um livro do escritor gaúcho Sergio Faraco intitulado O Pão e a Esfinge. Na maior parte das crônicas, Faraco conta histórias de passageiros do Titanic. Ele é assumidamente obcecado pelo navio e seus passageiros. Coleciona histórias curiosas sobre os mortos e os sobreviventes, a maioria envolvendo coincidências espantosas. (Imagine se Faraco comprasse o baú de Millvina: ele levantaria a tampa com mãos trêmulas, tocaria com delicadeza as roupinhas do bebê, cheiraria os panos, acariciaria as mantas...).

Coincidências espantosas não faltam na história do Titanic. Faraco conta que um dos primeiros acidentes de automóvel registrados nos Estados Unidos matou por atropelamento um menino que sobrevivera ao Titanic. E tem o jornalista, autor um texto em que descrevia o naufrágio de um transatlântico para alertar para a falta de segurança. O título era Relato de um Sobrevivente. Ele estava indo para Nova York receber um prêmio. Ao contrário do seu narrador fictício, não sobreviveu.

Faraco deve se divertir colecionando histórias curiosas sobre o Titanic. Provavelmente é uma espécie de hobby, daqueles que proporciona alegrias inocentes quando se encontra alguma novidade sobre o tema que se persegue. Como as pessoas que colecionam xícaras de porcelana, informações sobre locomotivas ou curiosidades sobre D. Pedro II. Em alguns casos, só Freud conseguiria fazer uma ligação entre o tema e a personalidade do colecionador.

A relação de Millvina com o navio foi bem diferente da de Faraco. Só depois dos 70 anos começou a participar de eventos relacionados à memória do Titanic. Ainda assim, nega-se a ver filmes sobre o navio. Em 1958, ela e outros sobreviventes foram convidados para a première de Uma Noite para Lembrar. Todos odiaram a experiência (foi Millvina quem usou o verbo odiar) porque, afinal, o filme mostrava a morte dos pais deles. Anos mais tarde ela foi convidada para uma sessão privé de Titanic, de James Cameron, aquele com Leonardo di Caprio e Kate Winslet, onde seria recebida pelo príncipe Charles. Respondeu que não iria "não importa quem vá estar lá". A memória das desgraças alheias nos fascina. A memória das nossas, nos machuca.

Parece que Millvina vai terminar 2008 sem se desfazer de seu baú de memórias. Um produtor de teatro inglês presenteou-a com as 3.000 libras esterlinas para que não precise se desfazer das lembranças. Tenho pra mim que, mesmo assim, Millvina vai dar fim ao baú. Mas terá que doá-lo para um museu — caso contrário vai aparecer outra alma bondosa disposta a ajudá-la a guardar o baú, mesmo que ela não faça questão. Isso, sim, daria um filme.

Marleth Silva é jornalista.

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